segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A psicóloga de 20 valores

Há mais de um ano que planeio a minha gravidez. Gosto de planear, gosto de fazer listas, gosto de estabelecer prioridades, gosto de fazer bem. Por isso, há mais de um ano que:
- Casei (ou pensei em casar, já que casei em Abril de 2010). E quando pensava já em não casar porque já vivia junta há algum tempo e talvez já não fizesse sentido, casei-me porque fiquei triste com a ideia de não me casar e… porque achava que era importante casarmos antes de termos o nosso bebé;
- Fui ao dentista e andei praticamente um ano a tratar as cáries (aconselhável a quem pretende engravidar porque as cáries já existentes avançam mais depressa durante a gravidez, apesar do dentista me ter explicado que aquela coisa dos bebés irem roubar o cálcio dos dentes das mães é um mito);
- Fui pela primeira vez ao ginecologista também há cerca de 1 ano; fiz exames, análises, citologia. A primeira citologia registou algumas alterações, mas após mais duas consultas, consegui que viesse tudo bem.
- Fiz análises. As primeiras tinham as transaminases (função hepática) alteradas. Repeti  as análises e, como engordei, o colesterol aumentou. Mas essa parte da história já vocês conhecem…;
- Comecei a tomar vitaminas pré-natais, cálcio e ácido fólico. Desde Novembro que todos os dias de manhã tomo o Folicil.
- Verifiquei a minha imunidade à rubéola e à varicela. Tudo ok!;
- Fiz o exame para saber se era imune à toxoplasmose. Não sou!
- O meu marido deixou de fumar, porque o sacrifício tem de ser dos dois e essa era a parte dele… por uma questão de saúde e dinheiro. Durou 5 meses e 14 dias.
- E, depois de tudo isto, informei a minha Chefe da minha intenção de ser mãe.
Sou psicóloga, trabalho na função pública, com contrato a termo certo. Trabalho no mesmo local quase desde o momento em que acabei o curso, há 6 anos atrás: 9 meses em estágio profissional, mais 3 meses a recibo verde e desde aí com contrato a termo. Em Novembro de 2009, foi publicado em Diário da República concurso para um psicólogo com o objectivo de me integrar no quadro da organização. Em Setembro de 2010, realizei a prova escrita de conhecimentos, quase um ano depois. E foi após essa primeira prova que informei então a minha Chefe.
Sensatamente, aconselhou-me a aguardar uns meses, para assinar contrato por tempo indeterminado, para entrar para o quadro. Passaria a ascender na carreira em função da minha avaliação de desempenho (Excelente no último ano e Muito Bom no ano anterior em que tive a melhor nota da organização), passaria a ter ADSE, passaria a ter estabilidade… Seriam apenas 2 meses, não corria riscos.
Tive a melhor nota na prova escrita – 19,75 valores. Realizei avaliação psicológica na CEGOC, entidade independente para não haver dúvidas e tive também aí a melhor nota – 20 valores (é assustador para um psicólogo ter 20 valores numa análise psicológica, é sintoma de uma certa neurose, mas eu tive porque as notas têm de ser normalizadas – só podemos ter 0, 4, 8, 12, 16 ou 20 – e fui o único 20). Fiquei em primeiro lugar por mérito próprio, concorreram mais dois colegas a desempenhar funções na mesma organização. Éramos 67 ao todo! Estava quase a poder engravidar!!
Na sexta-feira tive reunião para negociar a minha posição remuneratória (último passo antes de assinar contrato)… Um corte de €200,00 no vencimento!  Desculpe?? Senti uma revolta tão grande, uma falta de respeito tamanha, um atentado à minha dignidade enquanto profissional. Depois de 6 anos a servir a mesma casa, com a competência e o profissionalismo que todos me reconhecem (mas que não serve para pagar as contas no fim do mês), depois de me pedirem para aguardar uns meses antes de engravidar para que a minha situação fosse mais estável, um corte de €200,00 mensais? Estão a gozar comigo?? Com subsídio de férias e de Natal são €2800,00 por ano. Apeteceu-me dizer, “Não Obrigadinha, mas prefiro ficar com o meu contratozinho a termo certo com término a Fevereiro de 2012 e depois vou para o desemprego e fico a ganhar quase o mesmo porque a percentagem que me será paga é sobre o vencimento que me permitia passar férias uma vez por ano e jantar fora uma vez por mês.” Mas não, tive de engolir em seco, respirar fundo, e tentar provar que os 20 valores na avaliação psicológica justificam que seja uma profissional emocionalmente estável que não se deixa ir abaixo por uns míseros €200,00. Mas não, fiquei ao nível talvez de um 8!
Disse tudo o que pensava, que tinha vontade de me ir embora, que ia começar a procurar trabalho, que pela primeira vez me tinha arrependido da oferta de trabalho que me foi oferecida antes de entrar para aqui para trabalhar numa multinacional, que era uma falta de respeito terem-me pedido para aguardar só mais bocadinho e agora mandarem-me esta bofetada. Disse tudo e o senhor Vice-Presidente ouviu, solidarizou-se comigo, reconheceu o meu mérito, a minha competência, o reconhecimento dos parceiros com quem trabalhamos pelo meu trabalho, as horas extra feitas sem pedir nada em troca “por uma questão de responsabilidade e profissionalismo” (disse ele), e as ajudas de custo não reclamadas, e as viagens no meu carro, e as formações e o material de escritório pagos por mim (com os tais €200,00 que andava a ganhar a mais). O senhor Vice-Presidente, por quem tenho a maior estima e consideração, ouviu tudo e acho até que teve pena de mim. O senhor Vice-Presidente é um homem muito racional, tem uma figura simpática mas fala sempre com aquela distância emocional de segurança que se exige a um Vice-Presidente. Já estive com o senhor Vice-Presidente em festas de aniversário e em alguns contextos mais informais mas nem aí o homem profissional se desmontou. Mas, depois de me ouvir, de ter tido o privilégio de ver cair uma ou outra lágrima à psicóloga de 20 valores que era suposto ser equilibrada, estável, serena e com capacidade para aguentar ser atropelada com um camião, o senhor Vice-Presidente levantou-se, deu-lhe dois beijos e abraçou-a. Um abraço terno, não contido, um abraço de amparo, de pena, de força. A psicóloga desencostou-se um bocadinho para não ter de sofrer a humilhação de chorar mais uma lágrima… e foi!
Passou-se o fim-de-semana. Não dormi bem, não consegui estar sentada a ver televisão ou sossegada a pensar na vida. Aproveitei para fazer arrumações, para andar a pé; o marido aproveitou para lavar o carro, arranjar o jardim! E vou começando agora a digerir tudo isto!
O dinheiro que vou receber a menos faz-me falta e faz a diferença entre viver confortavelmente e suficientemente. É que a psicóloga de 20 valores não ganha mais de €1000 por mês!
E agora? Será que agora posso encomendar o meu bebé? Agora está tudo tratado, os médicos, as dietas, os exames, mas falta o dinheiro! Agora, agora mesmo, vou à procura de um part-time e vou ver se raspo daqui para fora…

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